My dream is having all this map painted in red

Tuesday 16 September 2008

Frenética Madrid

 

 

 

Mais de trinta anos depois da morte de Franco, a capital da Espanha brilha como nunca. Renovada pelo ritmo frenético de “la movida”, mas conservando suas melhores tradições, Madrid não pára de crescer e de surpreender a quem a visita.
Imagine o general Franco, uniformizado e cheio de pose, emergindo, mais de trinta anos depois de sua morte, das profundezas do mausoléu que mandou escavar nas paredes de granito da Serra de Guadarrama, dentro da província de Madrid. Sua primeira reação, provavelmente, seria de conforto, eis que sua tumba, no Valle de los Caídos, tem uma atmosfera tão sombria como a da própria Espanha que liderou com mãos de ferro até morrer, em 1975. Desse momento em diante, porém,  Franco ressuscitado só teria dissabores. Não seria preciso nem mesmo que chegasse à Plaza del Sol, no centro de Madrid, alguns quilômetros adiante, para perceber que, nessas mais de três décadas, o país caminhou exatamente no sentido oposto ao que ele conduzia.
É previsível até que, ao ver sua capital tão mudada e fervilhante, Franco desembainhasse sua espada, gritasse um irado "Por Diós" e conclamasse seus antigos correligionários a uma nova guerra civil, como a que matou um milhão de espanhóis na primeira metade deste século. Mas, fora uma meia dúzia de gatos-pingados saudosistas, o máximo que Franco conseguiria reunir, nesta suposta reencarnação, seria uma platéia de gente espantada com sua patética figura. No meio da qual poderia estar, por exemplo, o cineasta Pedro Almodóvar, com a camera em punho, registrando cenas para um novo longa-metragem que poderia batizar, sem muita criatividade, de Ditador à Beira de um Ataque de Nervos...
Almodóvar, aliás, é uma das mais conhecidas caras do movimento chamado "La Movida", uma incontrolável revolução cultural que chacoalhou os alicerces da Espanha desde meados da década de 80. Assim como ele, milhares de cabeças pensantes da geração pós-Franco aceleraram o país a um ritmo alucinante. Fosse para tirar o atraso em relação aos vizinhos europeus, fosse para esquecer das longas décadas de opressão, o fato é que "la movida" pôs a Espanha para correr como nunca. A economia foi modernizada, a corrupção endêmica diminuiu sensivelmente e a alma farrista dos espanhóis voltou à tona, produzindo novos talentos e enorme avanço cultural. O país integrou-se à Comunidade Européia, organizou a Feira Mundial de Sevilha, as Olimpíadas de Barcelona, e deu ao mundo provas de sobra de que havia retomado o caminho que já fez dela um dia a maior nação da Terra, responsável, entre outras pequenas façanhas,como por exemplo o descobrimento da América.
É essa Espanha liberta de fantasmas que o suposto fantasma de Franco reencontraria. Um país de muitas capitais, mas que, tanto do ponto de vista político quanto turístico, começa mesmo em Madrid. Essa cidade surpreendente que, para os padrões europeus, é quase uma criança. Historicamente muito menos importante do que a vizinha Toledo, palco de grandes batalhas e castelos de grandes reis do passado. Geograficamente menos estratégica que Barcelona, sua eterna rival no posto de cidade número 1 da Espanha, situada à beira do Mediterrâneo. Arquitetonicamente menos impressionante que Sevilha, Málaga, Córdoba e outras cidades que herdaram da ocupação moura construções exóticas, com arcos trabalhados e abóbadas. Mas, apesar de todos esses fatos, uma cidade bela, ampla e cosmopolita.
Não é preciso nem estar morto há mais de trinta anos como Franco para levar um susto com a nova cara de Madrid. A cidade se modernizou. Há largas avenidas onde antes não havia nada. Há bairros modernos, de arquitetura arrojada, onde antes havia descampados e acampamentos de ciganos. Há discotecas efervescentes vazando de gente a noite toda em prédios onde outrora viveram marqueses e barões abastados, E, acima de tudo, há jovens bebendo cañas (cervejas) por todos os cantos. Pode parecer incrível, mas os espanhóis gostam tanto da loirinha como os alemães. Claro que não desprezam também o jerez, o conhaque famoso, e o vermute (o qual chamam de bermu). Mas a caña vem na frente. O índice de bares por quilômetro quadrado em Madrid, especialmente em bairros boêmios, é proporcional à sede de viver que os madrilenos exibem desde que a liberdade voltou.
Em outras poucas capitais da Europa, a vida noturna é tão intensa. Não importa o dia da semana, nem a época do ano, todo mundo sai de casa o quanto pode. Do Rei Juan Carlos, que segundo os locais volta e meia é visto roncando sua moto pelas ruas sem nenhuma escolta, ao mais ínfimo dos plebeus, todo mundo vive intensamente na capital da Espanha. Se é fato que o homem passa um terço de sua vida dormindo, os madrilenos parecem decididos a que este terço seja o último, pronto para iniciar seu périplo pelos bares assim que o expediente se encerrar.
A coisa é tão profunda que chega ao extremo. Se você quiser, por exemplo, beber umas cañas e sair para dançar, não adianta aparecer antes das 2 da manhã. É nessa hora, que as discotecas abrem suas portas para receber os madrilenos até a manhã do dia seguinte. E na segunda está todo mundo no batente!
Para um povo que há trinta anos não podia sequer se reunir em praça pública, convenhamos que é um avanço e tanto. Ou uma retomada, se levarmos em conta que a tertúlia, que vem a ser a discussão de um tema qualquer por um grupo de pessoas, é uma das mais caras tradições madrilenas. Espanhóis, como se sabe, adoram discutir. Eles mesmos se divertem com o tema e brincam com a idéia de que, em seu país, "há um rei profissional e 40 milhões de reis amadores".  Desde que Madrid se viu subitamente promovida de fortaleza de Magerit a capital do Reino da Espanha pelo religiosíssimo rei Felipe II, em 1561, os madrilenos saem às ruas para debater e discutir. Em parte porque viver ao ar livre é recomendável nessa região de verões tórridos, onde a estufa é abastecida pelo vento quente soprado do norte da África. Em parte, também, porque o espanhol é um povo forjado por tantas raízes diferentes, de ibéricos a mouros, de romanos a judeus, que a existência de pontos de vista discordantes é o padrão. O único tema que não se discute hoje por aqui é a autoridade do rei Juan Carlos de Borbón.
Atlético e jovial, o monarca que foi ironicamente instalado no poder pelo generalíssimo Franco para ser uma espécie de fantoche das autoridades militares acabou assumindo seu posto de fato e de direito quando, em 1981, apoiou a democracia e abortou uma tentativa de golpe de Estado liderada por viúvas de Franco. Desde então, Juan Carlos é o fiador dos governos espanhóis. E, desde então, as lideranças espanholas estão entre as mais jovens e modernas da Europa.
Isto posto, fica mais fácil entender as mudanças que ocorreram em Madrid. O velho charme das tavernas do Casco Viejo, que é como se chama a região central da capital espanhola, próxima à belíssima Plaza Mayor, continua intacto. Mas ganhou mais brilho com a volta das tunas, os grupos de estudantes que todas as noites circulam pela região tocando violões e entoando antigos sucessos espanhóis em troca de alguns euros eventualmente doados pelos ouvintes. O Paseo de La Castellana, com seus jardins frondosos, conserva sua reputação de avenida mais longa e bela da Espanha, mas ficou mais europeu sem o policiamento ostensivo dos tempos de Franco e com a saudável mescla entre madrilenos da antiga, com suas boinas inconfundíveis, e madrilenos "da movida", vestidos ao melhor estilo moderninho. Até o Museu do Prado, já de antanhos um dos mais importantes acervos artísticos do mundo, ganhou mais destaque. Eis que, em suas imediações, um antigo hospital decadente foi transformado no Centro de Arte Reina Sofia, que já nasceu com um dos mais ricos acervos de arte contemporânea do Ocidente. Para lá foram conduzidos os magistrais trabalhos de Miró e Picasso, artistas espanhóis que se exilaram durante o regime franquista, além do melhor de Dalí, Magritte e outros gênios da pintura e da escultura modernas. Também para o Reina Sofia foi levado o colossal Guernica, de Picasso, considerado por muitos o mais expressivo retrato artístico do século 20 que ocupava o Pavilhão do Retiro, no Museu do Prado.
É verdade que nem tudo mudou. As touradas, por exemplo, sobreviveram à crescente maré ecologista e Madrid continua sendo o grande templo do Olé!  Entre o segundo domingo de março e o último de outubro, a Plaza de Toros de las Ventas, a maior do mundo, em seu estilo neomourisco, continua sediando centenas de corridas, com touros e homens se enfrentando numa batalha de morte. Madrilenos da gema ainda se emocionam até o fundo de suas almas com o bailado das capas vermelhas e aguardam ansiosos o fim do inverno, quando, sob a proteção de San Isidro, há um mês inteiro de corridas diárias. Os touros já não são tão valentes, pelo menos na opinião de boa parte dos entendidos, e olha que eles entendem tanto do tema que há até uma famosa escola de tauromaquia em Madrid. E os toureiros? Também não se fazem mais craques da estirpe de um El Cordobês, por exemplo, se bem que há quem discorde e, em havendo discussão, o jeito é encostar a barriga numa mesa de bar e pedir umas cañas, que é conversa para a noite toda.

Fome? Em Madrid ninguém passa. O hábito de oferecer aperitivos diversos, frutos do mar, empadas, chouriços, frios ou o que seja, aos clientes, as chamadas tapas, é provavelmente um dos mais deliciosos da cidade. Você pede cerveja e ganha calamares. Pede outra e ganha um saboroso prato de presunto defumado. Pede a terceira e lá vêm umas berinjelas temperadas. E assim vão se acumulando as garrafas das cañas e as montanhas de tapas.
Mas nem só de bebidas e aperitivos  vivem os espanhóis. Eles também comem, e como! O cochinillo (leitãozinho assado) é apenas o mais importante dos itens de um cardápio de características orgiásticas numa cidade que tem alguns dos melhores restaurantes do mundo. Mas há outros, milhares de outros. Na mesa, alegremente envolvidos pela fartura, é que os madrilenos revelam o mais cruel de seus instintos, a arrogância. "Em lugar nenhum se come como aqui", com aquele olhar de superioridade que faz os demais espanhóis os chamarem de chulos, que significa esnobes, com um tom um pouco mais pejorativo. Pergunte a um catalão, a um basco, a um andaluz ou a um aragonês e você sempre ouvirá, com o mesmo rancor, que os madrilenos são chulos.
É briga pra mais de metro. O regionalismo, com vertentes separatistas, é a velha questão espanhola, abafada à força de cassetetes pelo regime franquista. Nada tão suave quanto a rivalidade entre paulistas e cariocas. Felizmente, fora um outro exagero do ETA, o violento exército separatista basco, a questão está controlada.

Madrid é uma imensa mistura de estilos que caracteriza (ou descaracteriza) a cidade. Você não vê prédios com arquitetura semelhante como em outras cidades européias. Do neogótico ao neobarroco, passando pelo grandiloqüente estilo fascista, Madrid é uma grande salada arquitetônica, talvez por isso mesmo fascinante. Do Palácio do Oriente, a residência oficial dos reis, ao Palácio das Comunicações, nada é realmente importante do ponto de vista artístico. Mas a mistureba, originária de duas dinastias diferentes, a dos Habsburgos e a dos Borbóns, e de influências austríacas, francesas, italianas e holandesas, forma um conjunto urbano diferenciado e harmônico em suas contradições. Junte-se a isso a notável porcentagem de áreas verdes proporcionada pelos imensos parques públicos, que, somados, fazem de Madrid uma das capitais mais verdes do mundo, e você terá uma cidade fascinante.
Há parques notáveis  na capital da Espanha. O Retiro é uma espécie de Central Park de Madrid. É para lá que conflui a população nos fins de semana e cada árvore é uma bênção na terapia das ressacas da noite anterior (as cañas, lembra-se?). Há quem prefira o Campo del Moro, que é como se chamam os jardins do Palácio Real, quase sempre abertos para os súditos.

Entre tantas árvores, enfim, cultiva-se uma cidade que hoje tem 4 milhões de habitantes e está crescendo para os lados, espalhada por condomínios fechados que avançam pelo subúrbio. Que tem, é claro, um trânsito de metrópole, aliviado por um super eficiente sistema de metrô. Que tem requintes de modernidade, como a novíssima Porta da Europa, um par de prédios construído com inclinação de 14,3 graus, que se debruça, com jeito de quem vai cair, sobre o Paseo de la Castellana. Que tem torcedores do Real e do Atlético de Madrid, rivais tão ardorosos como palmeirenses e corintianos. Que tem um mercado de pulgas chamado El Rastro, onde se compra e se vende de tudo nas manhãs de domingo e onde se pratica a melhor tradição da pechincha ao estilo árabe. Que tem zarzuelas (comédias musicais) e tablados de flamenco para o povo e os turistas se divertirem. E que, depois de todo o agito, sempre tem um churro coberto de chocolate para se comer (o churro é uma antiga invenção madrilena, sabia?).
Espero com este texto te convencer, como outros 60 milhões de turistas a cada ano, a dar uma bela passada por Madrid. E, quando você estiver por aqui, aproveite para comprovar que os tempos do general Franco estão enterrados. Para todo o sempre.

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