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Saturday 23 October 2010

Praga – A Paris Do Século XXI

Praga - República Tcheca

Praga é uma Paris que esqueceu de crescer. Tem o que existe de melhor na capital francesa, sem os inconvenientes de toda metrópole, embora, verdade seja dita, também sem o glamour e a efervescência parisienses. Mas não há de ser nada. Para quem não sabe, Praga é um dos lugares mais românticos e festivos do mundo.

Praga - República Tcheca

Lá, tudo é perto, acolhedor, aconchegante, convidativo, e também alegre, provocador, despretensioso, irreverente. Não há quem não se encante. Como em Paris, a mágica está no ar, efeito de uma varinha de condão que toca todas as idades e estados de espírito. Assim que o frio permite, a festa começa nas praças ou na Ponte Carlos IV, que une a Staré Mesto (Cidade Velha) a Malá Strana (a Cidade Pequena).

Praga - República Tcheca

Nesses locais, há sempre um exército de adolescentes americanos e europeus de todas as línguas que se comporta como se a cidade fosse um grande acampamento rodeado de palácios, igrejas, museus e castelos, algo como se os jovens da Torre de Babel sentassem ao redor de várias fogueiras para cantar ao violão Bob Dylan. Na Ponte Carlos IV, por exemplo, é impossível andar sem tropeçar nessa cantoria ou nos pintores que fazem retratos e preenchem telas com a paisagem do Castelo de Praga, ou mesmo em artistas de diversos talentos e músicos magistrais que tocam jazz e canções folclóricas.

Praga - República Tcheca

A cidade é talhada para namorar. Se o cartão-postal de Paris é uma torre, a Eiffel, o de Praga é a cidade inteira, iluminada à noite. Ou seja, tudo conspira em favor dos romances, a ponto de uma das camisetas mais famosas vendidas por aqui levar a inscrição "Praga is for lovers", ou Praga é para quem ama. Paris tem cafés, palácios, pontes e um rio, o Sena, cortando-a. Pois Praga tem a mesma coisa, com a diferença de que o rio, aqui, foi batizado com o quase impronunciável nome de Vltava, ou Moldávia em português. Tão comum quanto ver adolescentes confraternizando, é assistir à comunhão de casais com mãos entrelaçadas, abraços apertados, beijos fogosos, suspiros e mais suspiros. Ao redor de todos, um cenário sublime, tão cinematográfico que foi usado por Tom Cruise em Missão Impossível.

Praga - República Tcheca

Não importa quais sejam suas intenções, Praga tem o que você procura. Encravada no miolo da Europa Central, a capital tcheca tem no total, com periferia e tudo, apenas 500 quilômetros quadrados, um terço do tamanho da cidade de São Paulo e menos da metade do que tem Paris. Como naquela história de os melhores perfumes estarem nos menores frascos, as atrações da capital da República Tcheca se concentram num espaço ainda menor. Em linha reta, elas estão distribuídas em cerca de dez quilômetros. Nesse trecho, a geografia dos bairros anda de mãos dadas com a História. Na verdade, Praga não é uma cidade e sim quatro, antes comandadas por um castelo, o de Praga e Hradcany. No passado, cada bairro foi uma cidade diferente, Mála Strana (a Cidade Pequena), Staré Mesto (a Cidade Velha), Nové Mesto (a Cidade Nova)  e Josefov, o bairro judeu, unificadas no século 18.

Praga - República Tcheca

Cada canto tem o seu charme e um monte de histórias para quem se dispuser a escutá-las. Mesmo as partes menos celebradas pelos turistas, como o Josefov, fundado em 1478, são belíssimas e guardam passagens mais do que interessantes, algumas tristes. Ali, no bairro judeu, chegaram a viver 36 mil pessoas antes da Segunda Guerra Mundial. Depois dos nazistas, sobraram apenas trezentos judeus, alguns fugiram, a maioria foi morta. O ponto alto do bairro, quase na esquina da praça da Cidade Velha, é o velho cemitério, único lugar em que, durante trezentos anos da Idade Média, os judeus podiam ser enterrados. Hoje, existem cerca de 12 mil lápides que abrigam mais de 100 mil pessoas, descansando sob o coro dos corvos que fazem ninhos ali. Não há jeito de pisar no cemitério e não ficar arrepiado. Para desanuviar o espírito, bastam alguns passos para encontrar bares e cafés que servem a deliciosa cerveja tcheca, as veneradas Pilsner e Budweiser.

Praga - República Tcheca

Além de entreter quem gosta de aprender história de perto, Praga, uma das poucas capitais europeias que não foram bombardeadas nas duas guerras mundiais, também seduz quem se contenta em apenas olhar. A arquitetura tem exemplos admiravelmente bem conservados ou restaurados dos estilos gótico, barroco e renascentista, nas igrejas, palácios e moradias. Só isso já valeria a viagem, mas você vai ganhar muito mais se tiver a curiosidade de saber a razão pela qual aquelas preciosidades estéticas estão ali.

Praga - República Tcheca

Sempre é muito interessante. Um pequeno exemplo: como em muitas outras cidades medievais, várias casas não têm números, e sim brasões ou pinturas na fachada. Por quê? O de sempre: uma imagem vale mais do que mil palavras, assim, a casa do vendedor de plumas tinha três avestruzes desenhados, a do fabricante de instrumentos musicais era reconhecida pelos violinos e por aí afora.

Praga - República Tcheca

Malá Strana, a Cidade Pequena, está cheia desses desenhos e brasões, mas não só ela. Na Cidade Velha, fica a Casa do Unicórnio Dourado, antigo salão literário muito frequentado por um vendedor de seguros que, mais tarde, tornou-se um dos maiores escritores da literatura universal: Franz Kafka, autor de clássicos como O Processo e Metamorfose. Kafka morava no número 22 do Beco de Ouro, ou Zlatá Ulicka, cujas casinhas foram construídas no final do século 16 para abrigar os guardas do castelo. Hoje, o número 22 é uma apertada livraria. Estando ali dentro, não é difícil entender de onde ele tirou inspiração para transformar um homem em uma barata, como em Metamorfose. Naquele espaço minúsculo, se a barata entrasse, o então vendedor de seguros teria de sair.

Praga - República Tcheca

Em todo caso, se a literatura não é sua forma preferida de arte, há muitas outras espalhadas pela cidade, inclusive uma maravilha medieval sem similar, o Relógio Astronômico, na antiga prefeitura da Cidade Velha. Construído em 1410 pelo mestre relojoeiro Hanus, continua funcionando até hoje. Nas horas cheias, um mecanismo aciona figuras que desfilam ante os olhares embasbacados de legiões de turistas. São ao todo dezessete bonecos, alguns animados. A procissão começa com a figura da Morte, que tem nas mãos uma corda e uma ampulheta, e termina com um galo que anuncia as horas. No meio, estão os doze apóstolos, um turco, um judeu e a Vaidade com seu espelho. A obra ficou tão perfeita que os administradores do século 15 cegaram o mestre relojoeiro para que ele não pudesse construir outro.

Praga - República Tcheca

Assim como no caso do relojoeiro, mesmo que a História tentasse, dificilmente surgiria outra cidade parecida com Praga. Da mesma forma que o tempo desenha esculturas nas rochas, os interesses e oportunidades da História moldaram uma preciosidade feita de tijolos e da maestria de artesãos e arquitetos. No século 10, havia praticamente apenas o castelo e um mercadão na praça da Cidade Velha, que oficialmente só virou uma cidade duzentos anos depois.

Praga - República Tcheca

Mais tarde, o monarca Venceslau I fundou ali perto Malá Strana, a Cidade Pequena. No século 14, outro governante, Carlos IV, amante das artes, arregaçou as mangas, criou a primeira universidade da Europa Central e  transformou Praga numa cidade magnífica, maior e mais bonita do que Paris ou Londres. É nessa época que surgiu a terceira cidade, Nové Mesto (a Nova), também com administração independente das outras. No século 15, levantou-se o bairro judeu.

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Nos duzentos anos seguintes, salvo um bom período de inspiração renascentista, Praga levou belos tombos, dos quais só foi se reerguer no século 18, data da maioria das igrejas e palácios de estilo barroco. Foi por essa época que Hradcany, o bairro que abriga o Castelo de Praga, ganhou o status de uma quarta cidade. Em 1918, tornou-se capital da Tchecoslováquia e vinte anos depois foi ocupada pelos nazistas. Daí em diante, viveu décadas de comunismo, até 1989, quando a Revolução de Veludo dissolveu a Tchecoslováquia, levantou a República Tcheca e, sob a batuta do presidente Václav Havel (outro intelectual), começou a entoar cânticos ao capitalismo.

Praga - República Tcheca

Há vinte anos, sob as privações da foice comunista, quase ninguém visitava Praga. O povo vivia amargurado, apesar de morar numa cidade encantada. Atrações e shows, só os oficiais. Hoje, com a abertura, a cidade renasce e cada vez mais se torna um pólo turístico. Com o dinheiro dos turistas, restaurantes e bares vêm ganhando decorações novas.

Praga - República Tcheca

Cafés colocam mesinhas para fora e flores na mesa para reforçar o clima romântico. Casas noturnas vêm se especializando em shows de jazz de primeira linha, apesar de haver as que incluem rock, world music e rap no cardápio musical. Os grandes teatros agendam balés e sinfônicas, muitas delas executando peças de Dvorak, o compositor tcheco mais famoso. Os pequenos encenam espetáculos do imperdível e aclamado Teatro Negro (também conhecido como Lanterna Mágica de Praga), invenção tcheca, no qual os atores ficam invisíveis no escuro manipulando objetos, cenários e bonecos iluminados. Músicos e artistas se apresentam nas ruas, praças e pontes, animando ainda mais o ambiente cultural.

Praga - República Tcheca

É difícil dar vinte passos sem receber um panfleto com a programação clássica da cidade, Vivaldi às duas, Mozart às quatro, Beethoven às cinco, Bach ao entardecer, Dvorak às 20:00hs e por aí vai.

Praga - República Tcheca

Se você já foi a Paris, conhece Madri, passeou por Roma e visitou  Londres, considere seriamente esta sugestão, na sua próxima viagem a Europa, vá a Praga. Só não faça o contrário, ir a Praga antes de conhecer algumas cidades consagradas do circuito europeu. Você corre o risco de achá-las não tão extraordinárias assim. Visitar Praga apenas depois de já ter cumprido o ritual da peregrinação pelas capitais mais famosas da Europa só fará aumentar sua surpresa com esta belíssima cidade que o comunismo escondeu durante um bom tempo. O problema é que esta gostosa sensação virá inevitavelmente acompanhada de outra, nada agradável, a de ter perdido tempo. "Por que eu não vim para cá antes?", você se perguntará, assim que colocar os pés na cidade e descobrir que tudo aquilo que ouviu falar não só é verdade, como Praga consegue ser ainda mais fascinante do que qualquer descrição que se possa fazer dela. Por isso, o intuito deste post não é o de mostrar esta cidade e sim convencê-lo a ir correndo para lá. Mas desde que você já conheça algo da Europa. Porque, do contrário, não entenderá a razão de Praga ser tão especial assim.

Praga - República Tcheca

Talvez o único problema de Praga é ter se tornado um destino para o turismo de massa. Praga, por ser tão bonita, carismática, melódica, perfeita, predispõe o visitante sensível a essa ilusão de que descobriu algo inédito, algo pessoal. Uma revelação inesperada. Daí vem um banho gelado, um doce amargo, uma mancha no branco imaculado que é o turismo de massa, a comprar quinquilharias que dizem “Eu estive em Praga”, fazendo filas nos balcões de fast-foods multinacionais, tomando posse das praças do centro histórico como um território ocupado para ingerir cerveja boa e barata até a incompreensão, caminhando ruidosamente pelas ruas silenciosas a horas absurdas da noite pois o dia é sempre curto em Praga.

Praga - República Tcheca

Coisas talvez de quem tem viajado um pouco de mais. Uma sensibilidade espicaçada pela comparação inevitável com outras cidades e a forma como elas se relacionam com o turismo de massa. Um olhar que, à medida que envelhece, se vai tornando mais crítico e menos tolerante com a mediocridade deste tipo de turismo. E, por fim, a noção de que se Praga não fosse tão bonita, uma das cidades mais bonitas do mundo, não seria uma vítima da sua própria beleza.

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